quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Primeiro texto de "Peregrino"

Como eu havia dito em outra postagem, o primeiro capítulo que escrevi de "Peregrino" tornou-se depois o segundo capítulo. É interessante relê-lo e ver o início de tudo. Hoje, talvez, algumas coisas eu escrevesse de outra forma. De qualquer modo, foi agradável rever as primeiras "pinceladas".
E resolvi dividir aqui esse momento. Acompanhem comigo, o primeiro passo... as primeiras frases.
O sol começava a desaparecer no horizonte, manchando o céu com cores alaranjadas e violetas. A tensão era palpável no ar e os cavalos estavam agitados, suas caudas chicoteando o ar e movimentando a cabeça inquietamente. Os homens estavam excitados com o combate próximo, apesar de saberem que a pequena aldeia não daria trabalho algum para a temível Tropa Especial. Era mais do que normal haver certa inquietação nos momentos anteriores à batalha; e esses experientes guerreiros haviam aprendido a lidar e até gostar deste momento de tensão. Aproveitavam essa sensação, inclusive, para aumentar a ferocidade de seus ataques.

O destacamento tinha como líder, Sir Enoque, um comandante astuto, cruel e experiente. Ele avaliava a situação e divertia-se em ver que a aldeia havia tentado se preparar para a ofensiva que iriam sofrer. Alisava com a mão esquerda a barba vermelha aparada, enquanto segurava seu elmo prateado com a direita. A rédea de seu cavalo encontrava-se solta sobre a cela, mas seu disciplinado animal permanecia postado sob o controle de seu cavaleiro. Os homens aguardavam a ordem de seu líder para iniciarem a investida contra a aldeia. De cima do elevado em que se encontravam, conseguiam apenas ver os tetos forrados de palha das cabanas que se mostravam acima da paliçada. Enoque sorriu observando a paisagem que iria ser a arena de combate para suas tropas.
Imbecis tolos! Deveriam ter fugido para a floresta ao invés de tentarem se defender contra nós. Imagine, simples aldeãos contra uma cavalaria de elite. Essa ousadia será a derrocada deles. Mas o esforço desses aldeãos não será em vão. Essas toras de madeira tão bem trabalhadas e postas lado a lado serão muito bem usadas por eles. Pois bem, serão empalados com a madeira que eles mesmos cortaram! – sorriu maliciosamente.
Olhou para os comandantes auxiliares, cada um responsável por dez homens. Acenou com a cabeça e todos os sete comandantes responderam com o mesmo gesto e colocaram seus elmos negros. O restante da tropa se regozijou, o combate estava próximo. Os animais sentiram e emoção no ar e inquietaram-se, arfando, baixando a cabeça e ensaiando pequenos passos para frente e para trás.
Uma lufada de vento frio soprou balançando as árvores próximas. Todos olhavam atentamente para a mão direita de seu líder que se encontrava suspensa, apontando para cima, seu braço formando noventa graus. As mãos dos homens suavam com a ansiedade e seus corações batiam aceleradamente.
Sir Enoque baixou o braço e os sete comandantes auxiliares saíram em disparada, descendo o elevado rumo à aldeia. Cada um dos comandantes conduziu o seu grupo para direções diferentes. Um foi para o flanco esquerdo da aldeia, o outro para o flanco direito, outro para trás e o último ficou concentrado em frente ao grande portão de madeira, e, logo, os três últimos pelotões o acompanharam em frente à entrada da aldeia.
Enquanto isso, Sir Enoque permanecia impassível no elevado observando as manobras de seus subordinados. Dois comandantes e seus respectivos grupos tomaram o flanco esquerdo da aldeia, outros dois, o direito, de forma a evitar possíveis fugas por trás e pelos lados da aldeia e intencionando fragmentar uma tímida resistência que os aldeãos poderiam ensaiar. Os três grupos restantes concentraram-se em um ataque frontal pelo portão da aldeia. Um forte cheiro de piche emanava no ar. No pequeno fosso abundava o líquido preto e viscoso de forma a dificultar a passagem. Nenhum cavaleiro com sua pesada armadura se aventuraria a atravessar o fosso de piche, e, mesmo que buscassem pular o obstáculo com sua montaria, as estacas do outro lado faziam a idéia parecer pouco convidativa.
O fosso circundando toda a aldeia e os portões fechados, tornava a pequena fortificação intransponível para a pequena tropa de cavaleiros. Os três comandantes diante dos portões, a única passagem possível para o interior da aldeia, entreolharam-se. Estavam diante de um dilema. Seu superior, Sir Enoque, devido ao seu excesso de confiança e ansiedade em devastar rapidamente a aldeia, havia decidido deixar as lentas máquinas de sítio no castelo do duque da desesperança. Assim, sem equipamento de sítio não tinham como entrar.
Havia duas possibilidades: obrigar os aldeãos a saír ou buscar toras de madeira na floresta para servirem de aríete. Entretanto, essa segunda possibilidade deixaria os homens expostos a qualquer contra-ofensiva por parte dos moradores da aldeia. Um gesto de Sir Enoque foi o suficiente para que os treinados comandantes entendessem qual era a estratégia a ser seguida. Era melhor se reagruparem a favor do vento para poderem executar a tática de ataque e, desta forma, obrigar os aldeãos a saírem da aldeia. Lançariam flechas incendiárias nas cabanas com teto de palha, e, assim, tinham certeza, conseguirem seu intento. Caso, contrário, se os moradores da aldeia decidissem por permanecerem em seu abrigo, poderiam sufocar com a fumaça.
Os comandantes já iam dar o comando para as tropas se retirarem para reagrupar quando flechas flamejantes foram disparadas de dentro da aldeia cortando o ar em todas as direções e atingindo a vegetação por trás dos três grupos de cavaleiros. Haviam caído em uma armadilha.
As flechas ao caírem na vegetação seca e besuntada de piche, fizeram surgir um imenso círculo de fogo ao redor da aldeia e que impedia os cavaleiros de baterem em retirada. O cheiro cáustico da fumaça impregnou o ar inquietando os cavalos. Mas, rapidamente, os cavaleiros conseguiram controlar suas treinadas montarias.
Os comandantes nada falavam, viravam a cabeça para todos os lados tentando avaliar a situação, enquanto que seus subordinados esperavam impassíveis as ordens dos seus superiores. O enorme anel flamejante não permitia fuga, queimando nervosamente e formando uma espessa parede de fogo. Quanto maior o calor, mais fumaça era produzida e mais difícil ficava de tentar controlar as montarias treinadas, que lutavam contra seu instinto mais primitivo, o de auto-sobrevivência.
Nesse momento, mais flechas sibilaram partindo de dentro da aldeia em busca do fosso de piche, incendiando-o. Os cavaleiros estavam encurralados, presos com o fogo a sua frente e atrás. As paredes de fogo se distanciavam uma da outra por aproximadamente cinco metros, produzindo um calor insuportável. A fumaça fazia arder nas narinas e nos olhos.
Os cavalos ficaram aterrorizados e incontroláveis. Coiceando e empinando, saltando para trás, vários cavaleiros caíram de suas assustadas montarias, enquanto tentavam acalmá-las. Um dos comandantes foi arremessado contra as chamas. Caiu secamente sob o solo em chamas batendo as costas. Atortoado, o fogo começou a queimar a túnica sobre a armadura com o brasão do rei. Lançou um profundo grito desesperado, enquanto tentava se livrar das chamas que queimavam suas vestes. O metal esquentava rapidamente, queimando seu corpo por inteiro. Arrastando-se pelo chão, debatendo-se, conseguiu atravessar a parede de fogo e chegar ao outro lado, mas, devido ao calor e as queimaduras, desmaiou tendo suas pernas ainda dentro das chamas. Em poucos minutos jazia inerte.
Vários cavaleiros foram pisoteados pelos cavalos recebendo severas contusões. Os animais rebelados, aproximadamente trinta, livres do peso extra em suas costas e dos puxões nas rédeas, procuravam desesperadamente uma rota de fuga. Corriam nervosamente de um canto ao outro, relinchando e pisoteando ainda mais os feridos. As chamas ardiam e a vegetação estalava ruidosamente com o calor caustico das paredes de fogo. Os homens estavam sufocados pela fumaça, seus olhos ardiam e eram castigados pelo calor dentro da armadura que intensificava os efeitos da temperatura das chamas.
Após a desesperada procura por uma rota de fuga, os animais que haviam se libertado de seus cavaleiros, partiram em direção ao único caminho não tomado pelo fogo, o portão da aldeia.
Em seu desespero, os cavalos aterrorizados relinchavam e batiam secamente seus cascos contra a barreira de madeira. Inicialmente, seus esforços pareciam em vão, mas após ser violentamente castigado pelos cavalos, o portão finalmente tombou fazendo um estrondoso barulho, vencendo o som produzido pelas chamas.
Os comandantes que organizavam um tímido socorro às vítimas dos cavalos enquanto tentavam controlar suas próprias montarias, viraram-se todos para o local onde o portão havia acabado de tombar, no momento em que os animais, em disparada, sumiam em meio à fumaça para o interior da aldeia.
Os cavalos correram através de um longo corredor de acesso, com paliçada de cada lado. Mais da metade apresentava ferimentos nas patas, e o corredor possuía uma passagem estreita que obrigava os animais a enfileirarem-se.
Atônitos, os líderes da tropa de cavaleiros observavam a rota de fuga dos animais. Olharam-se esperançosos. A sorte voltava a sorrir para eles. Apesar de três cavaleiros terem morrido, entre eles um comandante, e pelo menos dez estarem sem condições de combate, eles tinham número mais que suficiente para arrasar a aldeia. Sir Berwin, o mais velho e experiente dos comandantes gritou ordens para todos. Suas palavras mal davam para serem escutadas devido ao barulho das chamas.
- Vamos homens, os cavalos abriram caminho para nós. Não podemos deixar que míseros aldeãos ponham de joelho a Tropa Especial do rei. Todos que estejam a cavalo me sigam, vamos arrasar a aldeia inteira. Aqueles que estão a pé e estejam em condições de andar ajudem seus companheiros e os levem para dentro dos portões, a salvo do calor das chamas – bateu os calcanhares no flanco de sua montaria e saiu em disparada, seguido logo atrás pelos outros comandantes e seus homens. Todos com o ânimo renovado.
Assim que passaram pela entrada dos portões, Sir Berwin levantou sua mão direita, ordenando que os cavaleiros parassem. Com dificuldade, os homens conseguiram controlar suas montarias e interromperam o avanço apesar de se remexerem nervosamente para frente e para trás.
Sir Berwin havia imaginado que o melhor seria seguir os animais em disparada, aproveitando o tumulto que os cavalos em pânico iriam causar dentro da aldeia, e, conseqüentemente, desarticulariam qualquer formação ofensiva por parte dos aldeãos. Mas preferiu optar pela cautela. Ordenou que os feridos ficassem na entrada dos portões, em local protegido contra as chamas, e seguiu em frente com o restante dos homens, observando o estreito caminho. Eles, provavelmente, seriam uma presa fácil para as flechas do inimigo que poderiam fazer uma emboscada, alvejando-os facilmente por cima das paliçadas.
- Homens, desmontem e aticem as montarias para seguirem em frente. Formem posição defensiva contra flechas.
Os cavaleiros desmontaram e agitaram os cavalos batendo com a mão espalmada no corpo dos animais que saíram em disparada. Logo em seguida, os cavaleiros agruparam-se em formação defensiva. Os escudos de guerra presos ao antebraço protegendo cabeças e troncos.
Andavam calmamente, próximos um do outro, evitando deixar qualquer parte do corpo exposta. Chegaram à metade do corredor de paliçadas. Um homem de cabelos ruivos apareceu no final do corredor. Ficou encostado em uma das paredes, segurando uma espada curta com uma das mãos e batendo a lâmina devagar na palma da outra mão. Ele era alto se comparado aos homens de Brant, que eram aproximadamente quinze centímetros mais baixos. Tinha braços fortes devido ao trabalho diário. Levantou a mão e ordenou que os cavaleiros parassem.
- Parem! – disse de forma intimidadora e com a firmeza de quem está acostumado com a liderança – retornem por aonde vieram. Desse corredor vocês não passarão!
- Quem você pensa que é para falar assim com a Tropa Especial do rei? – bradou Sir Berwin em plenos pulmões – Você não sabe o que o aguarda seu bastardo!
- Eu conheço o método de abutres como vocês. Com certeza vocês gostariam de me prender e me jogar dentro do calabouço, para poderem me torturar pelo resto de minha vida, ou, gostariam de me esquartejar, pendurando cada parte de meu corpo pelos quatro cantos do reino para que sirva de exemplo a qualquer um que tente se rebelar contra o rei – arreganhou os dentes em um sorriso cheio de escárnio – Mas para isso vocês precisariam me pegar. E como eu disse, caso resolvam continuar por esse corredor, dele vocês não passarão!
- Quero ver você continuar com essa empáfia quando sentir o meu aço em suas entranhas. Homens, vamos pegá-lo!
O Comandante, irritado e deixando a cautela de lado, urrou brandindo a espada ao ar. Começou a correr e investiu em direção ao homem parado no final do corredor, sendo seguido pelos outros cavaleiros que, assim como ele, estavam irritados com a ousadia do estranho. O líder dos rebeldes suspirou e enquanto gracejava sobre o destino dos cavaleiros, rapidamente moveu o braço para o alto, dando o sinal que os aldeãos tanto esperavam.
A furiosa corrida havia levado os cavaleiros até a metade da distância que os separava do homem alto ao final do corredor de paliçadas. Os olhos injetados de sangue, as pupilas dilatadas e o brado rompendo o ar, tornavam palpável a raiva dos guerreiros. Sir Berwin cruzou os olhos com os do homem que queria perfurar com a lâmina de sua espada. Um forte estrondo foi ouvido e o chão se abriu, revelando a existência de um imenso alçapão. Os cavaleiros do rei haviam caído em mais uma armadilha.
Ao final do grande buraco jazia os orgulhosos guerreiros, transpassados por milhares de lanças. Uma saraivada de flechas silenciou os gemidos dos feridos que haviam sido deixados na entrada dos portões, acabando por exterminar todos os cavaleiros. Suas montarias seriam usadas pelos aldeãos para o trabalho diário e suas armas e armaduras ofereceriam condições de uma defesa ainda mais organizada contra futuros invasores.
Ao longe se via apenas a figura empertigada de Sir Enoque sob sua montaria, incrédulo, esperando o desenrolar de toda batalha. O plano inicial era muito simples. Suas tropas cercariam toda a aldeia e tochas seriam lançadas nos tetos das cabanas mais próximas às paliçadas. Assim, que o teto de palha se incendiasse, o vento se encarregaria de incendiar as outras cabanas. Assim, de acordo com sua estratégia, em poucos minutos a aldeia inteira iria arder em chamas. Os que tentassem fugir seriam mortos pelas suas tropas; os que ficassem dentro morreriam pelas chamas ou seriam asfixiados pela fumaça. De qualquer forma, não haveria sobreviventes, pois eles verificariam cada destroço e, quando as chamas baixassem, quaisquer sobreviventes que porventura houvesse, estariam tão esgotados e consumidos pelo calor, pela fumaça e pelo horror de ver seus companheiros perdidos nas chamas, que não dariam trabalho algum para os cavaleiros. Mas seu plano começou a ruir logo que as primeiras flechas flamejantes foram disparadas do interior da aldeia. Observou atônito o círculo de fogo se formar ao redor de suas tropas e a confusão que se seguiu quando seus homens perceberam que haviam caído em uma armadilha. Consternado, viu seus subordinados encurralados sob os dois círculos de fogo serem pisoteados por suas próprias montarias. Ouviu o crepitar das chamas queimando a vegetação e o ódio o consumiu. Apertou tão fortemente as rédeas de seu cavalo que seus dedos chegaram a doer. Chegou a acreditar que tudo estava perdido e que sua orgulhosa cavalaria seria vencida por um plano ardiloso de simples aldeãos. Entretanto, ao ver os cavalos tombarem os portões da aldeia e suas tropas entrarem e escaparem da armadilha de fogo, a esperança e o orgulho voltaram a imperar. Teve a certeza de que os rebeldes pagariam caro pela tentativa de sobrepujar os cavaleiros do rei. A honra da Tropa Especial seria restabelecida e a vergonha passada seria lavada com o sangue daqueles miseráveis. Mas, após o brado de seus guerreiros, vários minutos se passaram e a espera tensa se deu sem que nenhum ruído de metal ou qualquer som que denunciasse o canglor da batalha fosse ouvido. Entretanto, após algum tempo, fez-se ouvir o escárnio e o grito entusiasmado dos até então silenciosos aldeãos.
As chamas já estavam se apagando e Sir Enoque pôde ouvir claramente toda a festividade. Após todos os gritos de insulto ao rei, à nobreza e às suas tropas, veio o brado uníssono de louvor ao gênio estrategista que derrotou a temível Tropa Especial do rei de Brant:
- Thi-ers! Thi-ers! Thi-ers!
Thiers? Não pode ser! – seu rosto contorceu-se em uma máscara de ódio e espanto. Pôs seu elmo na cabeça e deu meia volta com seu cavalo. Derrotado e humilhado, o orgulhoso Sir Enoque retornou sozinho para Kador. Teria que dar a notícia ao rei sobre sua derrota e seria alvo de chacota de todo reino. Havia falhado na conquista de uma simples aldeia. Mas o que mais feria seu orgulho e castigava sua alma de forma mais dolorosa e profunda, era saber que novamente Thiers o humilhara e mais uma vez o havia posto de joelhos.

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